18 de mai. de 2009

Cinderela e eu

resci ouvindo histórias: meu avô era escritor e contador de “causos”, desses que exigem a esposa ao lado para confirmar suas narrativas inverossímeis. Meu pai era artista sonhador e vivia a inventar enredos sobre galáxias distantes, confessando-me, como só se confessa a uma criança, que achava que nosso Universo era um pedaço de mundo perdido dentro da barriga de algum gigante. Minha mãe, menos dada a mirabolar histórias, mas sabendo apreciar as boas, costumava contar-me um conto de fadas a cada noite. Pelo menos era isso o que ela pretendia, porque certo dia inventou de me contar a história da Cinderela e nesta narrativa eu empaquei por meses, feito mula teimosa.

Dona Wal conta (porque nós, filhos, acabamos por virar histórias das histórias que nos contavam) que, por volta dos três anos, eu, já debaixo das cobertas, invariavelmente pedia para que ela narrasse a famosa história da menina que, após perder a mãe, vê-se mediante uma madrasta malvada e suas filhas hediondas, antagonistas perversas que decidem transformar a nobre menina em escrava suja e segregada. Conta também que eu costumava chorar copiosamente quando dos maus tratos à pobre Borralheira, sempre a sofrer sozinha em seu leito de cinzas. E que eu perguntava com veemência: “Por que, mamãe? Por que as pessoas são tão ruins com ela?” Minha mãe não sabia o que responder, dizia que o mundo era feito de gente boa e gente má, e que era bom eu saber quem era quem o mais cedo possível. “Mas então por que - eu insistia - há gente tão má no mundo?”. Dona Wal não sabia o que responder, também ela procurava resposta. Acabava com um “o mundo é assim e pronto, vamos parar com essa história, esqueça a Gata Borralheira e trate de pegar no sono”. Mas eu não esquecia... No dia seguinte lá vinha pedido novo para a mesma velha e triste história. E mais uma sessão de prantos e perguntas...

Por que as crianças teimam em ouvir o que lhes perturba? - continuo eu a perguntar, depois de grande, depois de também ter tido filhos para contar histórias, depois de ter sido má e boa, princesa e madrasta, de ter comido cinza e ouro numa mesma vida. Para compreender? Para aceitar? Para perdoar? Ainda não sei a resposta. Só sei que ouvir Cinderela era como ser iniciada num mundo novo cujas regras eu ainda não conhecia. Um mundo de injustiças, predileções, ardis, golpes de sorte e magia. Não podia apreender essa novidade em uma única narrativa. O martelo do ouvido precisava de repetições e repetições e repetições, até estar a lição devidamente aprendida. Ainda gosto de ouvir a história da Cinderela, embora outros contos sejam mais apropriados para me apresentar as armas necessárias ao meu momento atual. Como transformar um marido fera em príncipe bondoso, tal como fez a Bela? Como fazer com que meu linho profissional seja reconhecido, como conseguiu Vassilissa, a Formosa? Como enredar meus leitores como o fez Sherezade, nas Mil e Uma Noites? São tantas as tarefas e tantos os ensinamentos a serem aprendidos! Mas o muro em construção começou lá atrás com a minha mãe e a Cinderela de todas as noites.

Dizem que toda mãe é um pouco madrasta, na tentativa inconsciente de perpetuar os filhos na condição de dependência. Mas fico achando que a outra faceta dela é a sempre bondosa fada madrinha, não por transformar abóbora em carruagem ou trapo em vestido reluzente, mas por nos oferecer esse material mágico e transformador que tanto nos emociona, nos fornece imagens para compreender o incompreensível, e ao qual costumamos chamar inocentemente de “Conto de Fadas”.


Majori Claro, 40 anos, psicóloga e escritora.

3 comentários:

  1. AMEI sua história Majori e preciso dizer, a minha mãe é uma super fada...!!! Dessas que cuidam mesmo, que estão ao lado em TODOS os momentos!!! Inclusive ela me ensinou que alguns sapos não viram príncipes e que ao escolher um sapo p/ beijar tenho antes que ter certeza que ele é encantado... Esse ensinamento eu aprendi bem direitinho!

    (E ela realmente me ensinou dessa maneira, com essa metáfora...rs! E só agora, escrevendo esse comentário, foi que parei p/ pensar a associação ao conto...rs!)

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  2. Já enviei minha estória, Alice... (estou ansiosa)


    E já sou sua fã!

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  3. Adorei ver a minha história contada aqui neste blog supersensível e ilustrada de forma tão bacana e criativa. Os depoimentos estão crescendo! Parabéns novamente, Adriana! Beijos!

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