26 de jun. de 2009

Nos dias de hoje


m uma sala de quarta série, a professora de língua portuguesa trabalhou com os alunos o conto Cinderela. Para a finalização do projeto as crianças tinham que recontar a história transportando-a para os nossos dias. E então, a história foi contada da seguinte maneira:

O pai da Cinderela seria o dono de uma grande empresa. Sua madrasta seria a chefe de Cinderela que, por sua vez, seria a secretária, pois afinal, ser secretária hoje em dia não é nada fácil. E o baile da Cinderela, para variar, acontece toda sexta, numa balada!


Cristiane Berlanca, 24 anos, professora e bailarina.

23 de jun. de 2009

Contos, retalhos e tijolos

s crianças têm um particular prazer em visitar oficinas onde se trabalha visivelmente com coisas. Elas se sentem atraídas irresistivelmente pelos detritos, onde quer que eles surjam – na construção de casas, na jardinagem, na carpintaria, na confecção de roupas. Nesses detritos, elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas assume para elas, e só para elas. Com tais detritos, não imitam o mundo dos adultos, mas colocam os restos e resíduos em uma relação nova e original. Assim, as próprias crianças constroem seu mundo de coisas, um microcosmo no macrocosmos.

O conto de fadas é uma dessas criações compostas de detritos – talvez a mais poderosa na vida espiritual da humanidade, surgida no processo de produção e decadência da saga. A criança lida com os elementos dos contos de fadas de modo tão soberano e imparcial como com retalhos e tijolos. Constrói seu mundo com esses contos, ou pelo menos os utiliza para ligar seus elementos. O mesmo ocorre com a canção e com a fábula.


Walter Benjamin (1892 - 1940), crítico literário, tradutor e filósofo.

Trecho extraído do livro “Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura.” São Paulo: Editora Brasiliense, 1994.

22 de jun. de 2009

Sobre as ilustrações


As pessoas têm me perguntado bastante sobre as ilustrações desse blog. Fui eu que fiz? Encontrei na internet?

Um pouco de cada. Respondi uma vez que as ilustrações são colagens que faço sobre imagens que pesquiso bastante e, em geral, capturo na rede. Tem algumas que mudo muita coisa, outras faço uma leve interferência no original. Quando a imagem aparece tal e qual eu encontrei, eu costumo avisar. Agora, como é natural numa colagem, dificilmente se precebe quem fez o que. Independente disso o principal é o sentido da ilustração. Ou seja: uma imagem de outro contexto, com outro sentido, se desloca e passa a participar de um novo jogo de idéias em relação com o texto.

Depois disso achei num livro "por acaso" esse texto oportuno.

Novas formas surgem ao longo do processo criador, muitas vezes, a partir da metamorfose de formas já existentes, inclusive formas do próprio artista. O “novo” é uma inflexão de uma forma anterior; a novidade é, portanto, sempre uma variação do passado. Esse aspecto, que envolve o ato criador, abre espaço para se observar questões relativas à intertextualidade.

As combinações intertextuais dão origem a “textos” que são tecidos de citações, saídas dos mil focos da cultura que, para Barthes, implica a morte do autor. A transformação se dá, portanto, por meio de re-significações e deformações de formas apreendidas. Assim, combinações insólitas acontecem na complexidade da ação criadora que, segundo a perspectiva aqui proposta, abre espaço para as autorias novas.

Essas novas formas estão, certamente, relacionadas com os diferentes processos de apreensão do mundo. Encontramos, assim, a unicidade de cada obra e a singularidade de cada artista na natureza das combinações e no modo como estas são concretizadas.


Cecília Almeida Salles. Gesto Inacabado. São Paulo: Annablume, 2007.

19 de jun. de 2009

Ritos primitivos

ueria relatar uma história bastante impressionante e que leva a pensar. Ela retrata o caso de uma menina de dois anos e meio, na sua primeira fase de teimosia, que, quando ela e a mãe faziam compras, recebeu de presente uma ilustração de Chapeuzinho Vermelho e o lobo. Na imagem era visível que o lobo, vestido com a touca e a camisola da avó, esperava Chapeuzinho Vermelho. A menina, que conhecia o conto de fada somente até o encontro do lobo com Chapeuzinho Vermelho no bosque, agora queria saber porque o lobo estava na cama. Ela ouviu atentamente o conhecido diálogo entre o lobo e Chapeuzinho Vermelho. O diálogo precisou ser repetido umas dozes vezes, pelo menos.

Nas noites seguintes a criança dormia muito inquieta e acordava com pavor do lobo mau. Não houve melhor meio para ajudá-la do que procurarem a figura, cortarem o lobo fora dela e o queimarem. Assim a criança ficou mais calma durante a noite, porém durante o dia ela perguntava muitas vezes, interessada, pelo animal. Cada vez era necessário dizer que o lobo tinha sido queimado, que não havia mais lobo nenhum, a não ser bem longe na Rússia.

Umas semanas apos estes fatos o pai da menina queria levá-la a um passeio até o bosque vizinho. A mãe, preocupada, dizia-lhe enquanto a vestia para sair: “Agora você vai com papai ao bosque para ver os coelhinhos engraçadinhos!” Radiante, a menina saiu. Mas na escada da casa encontraram um vizinho idoso que perguntou à menina aonde ela ia. Para surpresa de todos a menina respondeu, bem decidida, sem hesitar: “Ao bosque, para ver o lobo da Ússia”!

É interessante notar como mesmo essa criança sensível procura o encontro com o lobo poderoso e temível, e isso por iniciativa própria. Parece que ela dispõe de forças que a estimulam a buscar esse monstro devorador de crianças e opor-se a ele.

Observamos que essa criança espontaneamente procura um acontecimento que encontramos, em forma cristalizada, nos ritos de iniciação das culturas primitivas. Aparentemente, nesses rituais parte-se do princípio que o amadurecimento só advém por meio do sofrimento, dor e tormento. Um grau de maturidade ulterior só pode ser alcançado apos dissolução do grau anterior. Durante as solenidades introdutórias à puberdade, nas culturas primitivas, ainda se evocam de “fato” no iniciando, e dispõe de uma catálogo para nós incrível, de crueldades. Nas formas mais altas dessas solenidades de iniciação que, como é sabido, podem ir até os processos espirituais mais elevados, eles só se apresentam sob forma simbólica. Suas imagens mostram, porém, inteiramente, o mesmo caráter que conhecemos pelos contos de fadas e ritos primitivos.


Trecho extraído do livro “Contos de fadas vividos” de Hans Dieckmann. São Paulo: Paulinas, 1986.

Chapeuzinho Amarelo

Essa é uma estória que eu adoro escrita pelo Chico Buarque. Ela também fala sobre como os contos de fadas transformam a vida das pessoas e como as pessoas transformam as estórias, se transformando.

Chapeuzinho Amarelo


ra a Chapeuzinho Amarelo.
Amarelada de medo.
Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho.
Já não ria.
Em festa, não aparecia.
Não subia escada, nem descia.
Não estava resfriada, mas tossia.
Ouvia conto de fada, e estremecia.
Não brincava mais de nada, nem de amarelinha.

Tinha medo de trovão.
Minhoca, pra ela, era cobra.
E nunca apanhava sol, porque tinha medo da sombra.
Não ia pra fora pra não se sujar.
Não tomava sopa pra não ensopar.
Não tomava banho pra não descolar.
Não falava nada pra não engasgar.
Não ficava em pé com medo de cair.
Então vivia parada, deitada, mas sem dormir, com medo de pesadelo.

Era a Chapeuzinho Amarelo...
"E de todos os medos que tinha
O medo mais que medonho era o medo do tal do LOBO.
Um LOBO que nunca se via,
que morava lá pra longe,
do outro lado da montanha,
num buraco da Alemanha,
cheio de teia de aranha,
numa terra tão estranha,
que vai ver que o tal do LOBO
nem existia.

Mesmo assim a Chapeuzinho tinha cada vez mais medo do medo do medo do
medo de um dia encontrar um LOBO.
Um LOBO que não existia.

E Chapeuzinho amarelo,
de tanto pensar no LOBO,
de tanto sonhar com LOBO,
de tanto esperar o LOBO,
um dia topou com ele.
que era assim:
carão de LOBO,
olhão de LOBO,
jeitão de LOBO,
e principalmente um bocão
tão grande que era capaz de comer duas avós, .
um caçador, rei, princesa, sete panelas de arroz...
E um chapéu de sobremesa.

Mas o engraçado é que,
assim que encontrou o LOBO,
a Chapeuzinho Amarelo
foi perdendo aquele medo:
o medo do medo do medo do medo que tinha do LOBO.
Foi ficando só com um pouco de medo daquele lobo.
Depois acabou o medo e ela ficou só com o lobo.

O lobo ficou chateado de ver aquela menina olhando pra cara dele,
só que sem o medo dele.
Ficou mesmo envergonhado, triste, murcho e branco-azedo,
porque um lobo, tirado o medo, é um arremedo de lobo.
-E feito um lobo sem pêlo.
Um lobo pelado.

O lobo ficou chateado.

Ele gritou: sou um LOBO!
Mas a Chapeuzinho, nada.
E ele gritou: EU SOU UM LOBO!!!
E a Chapeuzinho deu risada.
E ele berrou: EU SOU UM LOBO!!!!!!!!!!
Chapeuzinho, já meio enjoada, com vontade de brincar de outra coisa.
Ele então gritou bem forte aquele seu nome de LOBO umas vinte e cinco vezes,
Que era pro medo ir voltando e a menininha saber com quem não estava falando:
LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO BO LO

Aí, Chapeuzinho encheu e disse:
"Pára assim! Agora! Já! Do jeito que você tá!"
E o lobo parado assim, do jeito que o lobo estava, já não era mais um LO-BO.
Era um BO-LO.
Um bolo de lobo fofo, tremendo que nem pudim, com medo de Chapeuzim.
Com medo de ser comido, com vela e tudo, inteirim.

Chapeuzinho não comeu aquele bolo de lobo, porque sempre preferiu de chocolate,
Aliás, ela agora come de tudo, menos sola de sapato.
Não tem mais medo de chuva, nem foge de carrapato.
Cai, levanta, se machuca, vai à praia, entra no mato,
Trepa em árvore, rouba fruta, depois joga amarelinha,
Com o primo da vizinha, com a filha do jornaleiro,
Com a sobrinha da madrinha
E o neto do sapateiro.
Mesmo quando está sozinha, inventa uma brincadeira.

E transforma em companheiro cada medo que ela tinha:
O raio virou orrái; barata é tabará; a bruxa virou xabru; e o diabo é bodiá.

FIM

(Ah, outros companheiros da Chapeuzinho Amarelo: o Gãodra, a Jacoru, o Barão-tu, o Pão Bichôpa... E todos os tronsmons. )

A vida real dos contos de fadas

uando comecei a minha pesquisa para esse blog, investiguei no Orkut as comunidades existentes sobre contos de fadas. A grande maioria delas se dividia no seguinte dilema: A vida é ou não é um conto de fadas? Existem vários exemplos tendendo para os dois lados.

Recebi recentemente algumas imagens que brincam com essa idéia de maneira crítica e divertida. Acredito que são também "Dizcontos de Fadas" por fazerem esse cruzamento entre a ficção e a realidade, revelando uma apropriação subjetiva desses contos. Estou divulgando as imagens exatamente como as recebi. Não sei o autor.

Tente descobrir quem são as "princesas".











Fotos: Dina Goldstein
Fonte: Revista Bravo!/Ago 09.


15 de jun. de 2009

Contos de fadas vividos

uando se pergunta a um grande número de pessoas, sem preparo analítico: “Qual foi, na sua infância, o seu conto de fadas preferido?”, poucas poderão dar resposta verdadeira e honesta. Na maior parte essas histórias estão submersas no inconsciente, e é por isso que se coloca questão – por meio de qual estratégia podem elas ser trazidas à consciência? Outra pergunta é, quais os meios para que esses contos possam ser usados na terapia, a fim de promover o processo de cura e de individuação durante o tratamento?
Não só os motivos oníricos de contos e fadas, mas também certos contos de fada, em si mesmos, podem apresentar relações profundas com o destino, o mundo interior, certas formas de experiência, modos de comportamento, doenças e fraquezas e ainda como méritos e forças do homem. Pode ser o caso de um conto de fada um uma história parecida com conto de fada, pela qual uma pessoa foi profundamente fascinada em sua infância, por que a amava muito ou ficou por ela aterrorizada. Mais tarde esse conto foi esquecido ou reprimido e submergiu no inconsciente, onde, porém, conservou vitalidade notável e desenvolveu efeitos que o adulto nunca tinha percebido como tendo qualquer conexão com o conto.

Trecho extraído do livro “Contos de fadas vividos” de Hans Dieckmann. São Paulo: Paulinas, 1986.

13 de jun. de 2009

As maçãs


Existe uma famosa compilação de contos de fada da Índia cuja primeira história começa assim: Todos os dias aparece na sala de audiência do Rei um mágico que lhe entrega uma linda maçã. Distraído, o Rei remete a seu ajudante de ordens que, por sua vez, manda jogá-la num quarto distante. Assim se faz durante um ano inteiro, até que um dia o macaco da Rainha, que se tinha soltado, pula dentro da sala de audiências, pega a maçã e a morde. Quando faz isso, todos vêem com admiração que esta maçã contém em seu interior uma pedra preciosa muito bela. Aí o Rei, naturalmente, investiga às pressas o lugar onde estavam as outras maçãs. De fato, encontram-se de baixo da polpa apodrecida das frutas desprezadas, um monte de pedras preciosas de grande valor, cujo número corresponde exatamente aos dias do ano.

Assim acontece conosco quanto aos contos de fadas. Após a infância jogamo-los fora como se não tivessem valor. “É somente um conto de fada”, dizemos, e os deixamos apodrecer num quarto distante. Até que quem sabe, passamos a viver uma situação – seja uma séria doença da alam, seja uma crise na vida – em razão da qual, por necessidade, abrimos esse quarto.

A força criadora plástica e a sabedoria profunda dos contos de fadas nunca mais me deixaram desde que pela primeira vez estive em contato com a sua plenitude, quando menino ainda, na casa da minha avó. Os contos de fadas se reavivaram quando comecei a contá-los ao meu primeiro filho, e finalmente reencontrei todos esses amados da minha infância no inconsciente de meus pacientes quando fui ser psicanalista. Freqüentemente, os contos estavam esquecidos, há tempo, na consciência dos pacientes, mas lá no inconsciente estavam vivos. Surgiram nos seus sonhos e disseram a essas pessoas muitas coisas estranhas, às quais nunca haviam prestado atenção e ao largo das quais tinham passado, mas que vieram evidenciar-se agora, de repente, como as maiores preciosidades da sua alma.


Trecho extraído do livro “Contos de fadas vividos” de Hans Dieckmann. São Paulo: Paulinas, 1986.

10 de jun. de 2009

Qual é o seu conto de fadas favorito? (parte 1)


ual é o seu conto de fadas favorito? – É uma pergunta que gosto de fazer a amigos e conhecidos.

A maioria das mulheres responde “Cinderela” sem pensar, enquanto homens parece confusos, fazem uma pausa e respondem:
- Não consigo me lembrar de nenhum. Será que “Peter Pan” vale?

Depois de alguns minutos de reflexão, contudo, a maioria das pessoas pesca algumas imagens que vêm à superfície, carregadas de significado, mesmo que o esboço do enredo tiver sido esquecido. A escolha (que, afinal, pode acabar não sendo “Cinderela”) oferece uma visão de vislumbre da alma do interlocutor, ainda que sua relevância permaneça oculta. Tantas imagens enchem os contos de fadas clássicos que eles estão destinados a conter uma dúzia de diferentes matizes para uma dúzia de leitores, o que torna a interpretação de contos de fadas para uma pessoa algo tão tentador e arriscado quanto desenredar o sonho dela.



Trecho extraído do livro "Fiando Palha, Tecendo Ouro" de Joan Gould. São Paulo: Rocco, 2007.

Qual é o seu conto de fadas favorito? (parte 2)


ual é o seu conto de fadas favorito? – É uma pergunta que gosto de fazer a amigos e conhecidos.

- "Rumpelstiltskin” – disse-me uma mulher, uma resposta incomum. – Éramos pobres, de modo que eu não tinha muitos brinquedos quando era pequena, e pensava como seria maravilhoso pegar um fardo de palha e entrelaçá-lo até virar ouro de modo que pudesse comprar todos os brinquedos que queria.

- "Rumpelstiltskin” – disse-me outra mulher, mais jovem. – Eu me via como a heroína que era ameaçada com a morte se não fiasse a palha de modo que se transformasse em ouro, e assim prometeu ao anão que se ele tecesse a palha para ela iria lhe dar seu primogênito. Esse é meu medo secreto, um sentimento de que meu bebê não é realmente meu. Eu não o fiz, posso não merecê-lo, ele pode não ficar comigo, por não ser meu. Algum dia precisarei pagar um resgate para salvá-lo do destino.

- O anão, não a Rainha, é o pivô da história – observou um psiquiatra. – Seu sentimento de que seu nome, que é a sua identidade, tem de ser mantido em segredo, caso contrario ele será revelado ao mundo como o corcunda, a criatura ridícula, murcha e enrugada que ele sabe ser. E se isso acontecer, ele desaparecerá.


Trecho extraído do livro "Fiando Palha, Tecendo Ouro" de Joan Gould. São Paulo: Rocco, 2007.

9 de jun. de 2009

Prisioneiro de um quarto assimétrico


epois de um dia extenuante de trabalho, sou despejado no hotel. Subo diversos andares e adentro o quarto escuro. Tateio as paredes até encontrar o interruptor, acendo as luzes apenas p/ checar se está tudo certo, neste momento o que mais desejo é escuridão e dormir. O clima é frio, tomo um banho quente e deslizo para debaixo das cobertas, apago as luzes, olhando para o teto penso em dormir para sempre naquele quarto.

No meio da madrugada acordo, olho para o celular para ver as horas, o visor está apagado, decido me levantar na escuridão e topo com a parede, minha memória do espaço do quarto era outra, fico com a impressão de que levantei do lado errado da cama. Procuro localizar o interruptor para acender as luzes e começo a tatear as paredes, a impressão é de um local diferente, estou agora em um quarto com paredes assimétricas sem portas ou janelas e um espaço minúsculo ao redor de uma cama. Concluo se tratar de um sonho.

No meio da madrugada acordo, olho para o celular para ver as horas, o visor está apagado, decido me levantar na escuridão e topo com a parede, minha memória do espaço do quarto era outra, fico com a impressão de que levantei do lado errado da cama. Procuro localizar o interruptor para acender as luzes e começo a tatear as paredes, a impressão é de um local diferente, estou agora em um quarto com paredes assimétricas sem portas ou janelas e um espaço minúsculo ao redor de uma cama. Concluo estar aprisionado naquele quarto e lamento ter desejado dormir ali para sempre.

No meio da madrugada acordo, olho para o celular para ver as horas, o visor indica que são cinco horas e vinte e três minutos.

Isso não é um conto de fadas, mas uma participação querida de um amigo especial.


Jum Nakao, 42 anos, Estilista e Diretor de criação.

7 de jun. de 2009

Dona Daluz e sua filha

oma o rolo dum livro, e escreve nele todas as palavras que tenho falado, desde os dias de Josias até hoje.
Jeremias, 36:2

Era uma vez, no meu tempo do era proibido, em que duas coisas me eram expressamente interditadas. A televisão é a primeira, a segunda era todo livro que não fosse a Bíblia. Nesse caminho do dois posso apontar também dois fatores que preponderavam nessas duas proibições. O primeiro era a Fé da minha mãe e o segundo, não menos relevante, era a nossa situação precária de camponeses nômades.

O fato é que a minha primeira meninice foi muito longe de Fadas e Bruxas, Príncipes e Princesas. Se esses personagens quisessem alguma chance de se aproximar de mim teriam uma luta ferrenha com meus Anjos, Demônios e Bestas de sete cabeças e dez chifres. E do lado destes estavam também sacis, caiporas, mulas-sem-cabeça e até os caipiras da quadrilha de Festa Junina. Era “tudo coisa do Satanás!”, dizia a minha mãe. “E o Coisa-ruim é um trem traiçoeiro!”, continuava ela, “Foi exatamente numa dessas festa de quermesse que você fica de olho, que um dia ele apareceu transformado num home lindo, todo cheroso e vestido com terno branco. Tinha também um chapéu na cabeça que não tirava por nada. A sua boa dança e a sua beleza chamou a atenção de todo mundo no baile. Todas essas mocinha sem-vergonha que vão pra forró queriam dançar com ele. Já tava dançando com a última delas quando o calor no baile ficou infernal. De repente a mocinha percebeu que estava saindo uma fumaçinha da cabeça do seu parceiro e assustada tirou o chapéu dele. O Oh foi geral. Era gente correndo pra tudo qu’é lado, pois tudo tinha ficado claro. Na cabeça do tar bunitão tinha dois chifres! Ao ver que tinha sido descoberto, o Capeta fez um estouro e desapareceu de repente, deixando o ambiente todo cheio de fumaça e cheirando enxofre. Por isso é que eu digo, meu filho, essas música, essas dança, é tudo coisa Dele!”. E foi assim que quando eu tive a oportunidade um pouco tardia de entrar na escola, sempre fugia, orgulhosamente, de ser noivo, cavalheiro ou qualquer outro personagem nas quadrilhas juninas. Na ocasião dessas festas ficava em casa bem a salvo do Coisa-ruim.

Mas foi bem antes d’eu aprender a ler, lá na minha alturinha magricela dos quatro e cinco anos, que a minha avó materna inaugurou algo levado à continuidade por minha mãe durante longo tempo. A velha que já tinha dado à luz onze vezes, como num ritual muito sagrado e toda carinhosa lia-me a Bíblia. Eram deliciosas e, ao mesmo tempo, assustadoras histórias que faiscavam meus olhos e ficavam dias crepitando na minha imaginação. Ao perceber o meu grande interesse a Dona Daluz não exitou em passar a me chamar de anjinho e me eleger como um instrumento do Senhor. Concepção que lhe deu a idéia de me fazer decorar salmos e histórias inteiras da Bíblia para recitar no púlpito da igreja no culto reservado aos jovens em louvação ao Senhor. Ela relia, pacientemente, trecho a trecho inúmeras vezes até eu conseguir reproduzir de memória ipsis litteris o que estava no texto bíblico.

Quando aquele pitoco de gente, magricela e orelhudinho, pronunciava a última palavra do salmo ou da história era uma comoção geral. As senhoras presentes choravam e gritavam “Aleluia!”. “É um anjo!”, exclamavam e repetiam para os ouvidos orgulhosos de dona Daluz e sua filha Serdilete, a minha mãe.

O entusiasmo para continuar com a obra do instrumentinho do Senhor só aumentava. Lembro-me que não havia censura de qual história da Bíblia eu poderia decorar, já que todas eram de inspiração de Deus mesmo! Era assim que a minha caminhada bíblica ia do Éden à Ilha de Patmos. Peregrinação que me fez passar por Abraão, Josué, Moisés e o seu cajado mágico, Davi e o gigante Golias, Elias e sua capa mágica, o temente rei Josias que foi coroado com oito anos, o paciente Jó, o sábio rei Salomão e inúmeros outros. Passei pelo caminho do Gólgota várias vezes e fiz o caminho de Damasco diversas outras.
Mas entre os meus maiores fascínios estavam as mulheres bíblicas. E começava lá com a Eva, esse pedaço da costela de Adão que os levou à expulsão do Paraíso. Depois posso recomeçar a enumerar pela rainha vilã Jezebel, a sedutora Cleópatra, a extravagante rainha de Sabá, a ardilosa Dalila, a ambiciosa Salomé, a fiel Maria Madalena e dentre tantas outras a mítica, e para mim a sempre mais fascinante, mulher que foge do dragão. Esta última é puro símbolo, nem nome ela tem. Está, portanto, muito distante da densidade chã de uma Dalila ou Salomé. Coisa que sempre me faz perguntar o que nela me impressiona tanto. Por isso terei que contar aqui a história dela para ver se alguém se habilita a me ajudar na investigação do que seria tão impressionante nessa mulher:

A mulher e o dragão

E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça.
E estava grávida, e com dores de parto, e gritava com ânsias de dar à luz.
E viu-se outro sinal no céu; e eis que era um grande dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre as suas cabeças sete diademas.
E a sua cauda levou após si a terça parte das estrelas do céu, e lançou-as sobre a terra; e o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz, para que, dando ela à luz, lhe tragasse o filho.
E deu à luz um filho, um varão que há de reger todas as nações com vara de ferro; e o seu filho foi arrebatado para Deus e para o seu trono.
E a mulher fugiu para o deserto, onde já tinha lugar preparado por Deus para que ali fosse alimentada durante mil duzentos e sessenta dias.
E houve batalhas no céu: Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhava o dragão e seus anjos.
Mas não prevaleceram, nem mais o seu lugar se achou nos céus.
E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele. [...]

E quando o dragão viu que fora lançado na terra, perseguiu a mulher que dera à luz o varão.
E foram dadas à mulher duas asas de grande águia, para que voasse para o deserto, ao seu lugar, onde é sustentada por um tempo, e tempos, e metade de um tempo, fora da vista da serpente.
E a serpente lançou da sua boca, atrás da mulher, água como um rio, para que pela corrente a fizesse arrebatar.
E a terra ajudou a mulher; e a terra abriu a sua boca e tragou o rio que o dragão lançara da sua boca.
E o dragão irou-se contra a mulher, e foi fazer guerra ao resto da sua semente, [...].
(Apocalipse 12. Da tradução de João Ferreira de Almeida.)

O que dizer dessa fugitiva toda vestida de sol, coroada com estrelas e com a lua debaixo dos pés?!

O fato é que a vovó Daluz ficou para trás, se tornando apenas uma lembrança cercada pela imaginação na memória de um rapagão, hoje com 29 anos, que aos cinco anos teve que deixar os avós para acompanhar o pai nômade.

Movido pela promessa de riqueza, meu pai resolveu sair do sul e migrar para o norte. Foi em 1984 que, junto a mais outra família, atravessamos o país escondidos na sufocante carroceria de um caminhão. E foi lá, no território amazônico, morando na floresta e em situações cada vez mais precárias, que as minhas histórias bíblicas mantidas acesas pela minha mãe passaram a conviver com as aventuras do Pedro Malasarte e histórias de assombração contadas por meu pai ao pé da lamparina. Mas isso já é outra história!


Josias Padilha, 29 anos, Ator e Contador de Histórias