7 de jun. de 2009

Dona Daluz e sua filha

oma o rolo dum livro, e escreve nele todas as palavras que tenho falado, desde os dias de Josias até hoje.
Jeremias, 36:2

Era uma vez, no meu tempo do era proibido, em que duas coisas me eram expressamente interditadas. A televisão é a primeira, a segunda era todo livro que não fosse a Bíblia. Nesse caminho do dois posso apontar também dois fatores que preponderavam nessas duas proibições. O primeiro era a Fé da minha mãe e o segundo, não menos relevante, era a nossa situação precária de camponeses nômades.

O fato é que a minha primeira meninice foi muito longe de Fadas e Bruxas, Príncipes e Princesas. Se esses personagens quisessem alguma chance de se aproximar de mim teriam uma luta ferrenha com meus Anjos, Demônios e Bestas de sete cabeças e dez chifres. E do lado destes estavam também sacis, caiporas, mulas-sem-cabeça e até os caipiras da quadrilha de Festa Junina. Era “tudo coisa do Satanás!”, dizia a minha mãe. “E o Coisa-ruim é um trem traiçoeiro!”, continuava ela, “Foi exatamente numa dessas festa de quermesse que você fica de olho, que um dia ele apareceu transformado num home lindo, todo cheroso e vestido com terno branco. Tinha também um chapéu na cabeça que não tirava por nada. A sua boa dança e a sua beleza chamou a atenção de todo mundo no baile. Todas essas mocinha sem-vergonha que vão pra forró queriam dançar com ele. Já tava dançando com a última delas quando o calor no baile ficou infernal. De repente a mocinha percebeu que estava saindo uma fumaçinha da cabeça do seu parceiro e assustada tirou o chapéu dele. O Oh foi geral. Era gente correndo pra tudo qu’é lado, pois tudo tinha ficado claro. Na cabeça do tar bunitão tinha dois chifres! Ao ver que tinha sido descoberto, o Capeta fez um estouro e desapareceu de repente, deixando o ambiente todo cheio de fumaça e cheirando enxofre. Por isso é que eu digo, meu filho, essas música, essas dança, é tudo coisa Dele!”. E foi assim que quando eu tive a oportunidade um pouco tardia de entrar na escola, sempre fugia, orgulhosamente, de ser noivo, cavalheiro ou qualquer outro personagem nas quadrilhas juninas. Na ocasião dessas festas ficava em casa bem a salvo do Coisa-ruim.

Mas foi bem antes d’eu aprender a ler, lá na minha alturinha magricela dos quatro e cinco anos, que a minha avó materna inaugurou algo levado à continuidade por minha mãe durante longo tempo. A velha que já tinha dado à luz onze vezes, como num ritual muito sagrado e toda carinhosa lia-me a Bíblia. Eram deliciosas e, ao mesmo tempo, assustadoras histórias que faiscavam meus olhos e ficavam dias crepitando na minha imaginação. Ao perceber o meu grande interesse a Dona Daluz não exitou em passar a me chamar de anjinho e me eleger como um instrumento do Senhor. Concepção que lhe deu a idéia de me fazer decorar salmos e histórias inteiras da Bíblia para recitar no púlpito da igreja no culto reservado aos jovens em louvação ao Senhor. Ela relia, pacientemente, trecho a trecho inúmeras vezes até eu conseguir reproduzir de memória ipsis litteris o que estava no texto bíblico.

Quando aquele pitoco de gente, magricela e orelhudinho, pronunciava a última palavra do salmo ou da história era uma comoção geral. As senhoras presentes choravam e gritavam “Aleluia!”. “É um anjo!”, exclamavam e repetiam para os ouvidos orgulhosos de dona Daluz e sua filha Serdilete, a minha mãe.

O entusiasmo para continuar com a obra do instrumentinho do Senhor só aumentava. Lembro-me que não havia censura de qual história da Bíblia eu poderia decorar, já que todas eram de inspiração de Deus mesmo! Era assim que a minha caminhada bíblica ia do Éden à Ilha de Patmos. Peregrinação que me fez passar por Abraão, Josué, Moisés e o seu cajado mágico, Davi e o gigante Golias, Elias e sua capa mágica, o temente rei Josias que foi coroado com oito anos, o paciente Jó, o sábio rei Salomão e inúmeros outros. Passei pelo caminho do Gólgota várias vezes e fiz o caminho de Damasco diversas outras.
Mas entre os meus maiores fascínios estavam as mulheres bíblicas. E começava lá com a Eva, esse pedaço da costela de Adão que os levou à expulsão do Paraíso. Depois posso recomeçar a enumerar pela rainha vilã Jezebel, a sedutora Cleópatra, a extravagante rainha de Sabá, a ardilosa Dalila, a ambiciosa Salomé, a fiel Maria Madalena e dentre tantas outras a mítica, e para mim a sempre mais fascinante, mulher que foge do dragão. Esta última é puro símbolo, nem nome ela tem. Está, portanto, muito distante da densidade chã de uma Dalila ou Salomé. Coisa que sempre me faz perguntar o que nela me impressiona tanto. Por isso terei que contar aqui a história dela para ver se alguém se habilita a me ajudar na investigação do que seria tão impressionante nessa mulher:

A mulher e o dragão

E viu-se um grande sinal no céu: uma mulher vestida de sol, tendo a lua debaixo dos seus pés, e uma coroa de doze estrelas sobre a cabeça.
E estava grávida, e com dores de parto, e gritava com ânsias de dar à luz.
E viu-se outro sinal no céu; e eis que era um grande dragão vermelho, que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre as suas cabeças sete diademas.
E a sua cauda levou após si a terça parte das estrelas do céu, e lançou-as sobre a terra; e o dragão parou diante da mulher que havia de dar à luz, para que, dando ela à luz, lhe tragasse o filho.
E deu à luz um filho, um varão que há de reger todas as nações com vara de ferro; e o seu filho foi arrebatado para Deus e para o seu trono.
E a mulher fugiu para o deserto, onde já tinha lugar preparado por Deus para que ali fosse alimentada durante mil duzentos e sessenta dias.
E houve batalhas no céu: Miguel e os seus anjos batalhavam contra o dragão, e batalhava o dragão e seus anjos.
Mas não prevaleceram, nem mais o seu lugar se achou nos céus.
E foi precipitado o grande dragão, a antiga serpente, chamada o Diabo, e Satanás, que engana todo o mundo; ele foi precipitado na terra, e os seus anjos foram lançados com ele. [...]

E quando o dragão viu que fora lançado na terra, perseguiu a mulher que dera à luz o varão.
E foram dadas à mulher duas asas de grande águia, para que voasse para o deserto, ao seu lugar, onde é sustentada por um tempo, e tempos, e metade de um tempo, fora da vista da serpente.
E a serpente lançou da sua boca, atrás da mulher, água como um rio, para que pela corrente a fizesse arrebatar.
E a terra ajudou a mulher; e a terra abriu a sua boca e tragou o rio que o dragão lançara da sua boca.
E o dragão irou-se contra a mulher, e foi fazer guerra ao resto da sua semente, [...].
(Apocalipse 12. Da tradução de João Ferreira de Almeida.)

O que dizer dessa fugitiva toda vestida de sol, coroada com estrelas e com a lua debaixo dos pés?!

O fato é que a vovó Daluz ficou para trás, se tornando apenas uma lembrança cercada pela imaginação na memória de um rapagão, hoje com 29 anos, que aos cinco anos teve que deixar os avós para acompanhar o pai nômade.

Movido pela promessa de riqueza, meu pai resolveu sair do sul e migrar para o norte. Foi em 1984 que, junto a mais outra família, atravessamos o país escondidos na sufocante carroceria de um caminhão. E foi lá, no território amazônico, morando na floresta e em situações cada vez mais precárias, que as minhas histórias bíblicas mantidas acesas pela minha mãe passaram a conviver com as aventuras do Pedro Malasarte e histórias de assombração contadas por meu pai ao pé da lamparina. Mas isso já é outra história!


Josias Padilha, 29 anos, Ator e Contador de Histórias

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