27 de mai. de 2009

Almas como aves

 Margaret Atwood, 69 anos, escritora.


"muito tempo atrás - para ser mais precisa, nos anos 50 – o conhecimento dos contos folclóricos europeus era muito restrito na América do Norte. A maior parte deles era censurada e apenas alguns contos circulavam entre o grande público. Entre esses estavam algumas versões cor-de-rosa de "Cinderela" ou "A Bela Adormecida", histórias que apresentavam heroínas passivas à espera de serem salvas pelo príncipe encantado. É fácil de entender por que muitas mulheres se opuseram a essas histórias, vistas como estímulos à inércia feminina. Mesmo essas poucas histórias chegaram a sofrer censuras. Naquele momento se condenava tudo aquilo que incentivasse ou mesmo reconhecesse as emoções mais sombrias do ser humano. Para as meninas bem comportadas dos anos cinquenta, a principal atração dessas histórias era de fato as roupas das princesas. 

                                                                                           Julien Pacaud


Eu não era uma menina bem comportada nos anos cinqüenta. Eu tinha nascido em 1939, logo após a eclosão da Segunda Guerra Mundial, quando não era possível varrer as emoções mais sombrias para baixo do tapete. Elas estavam expostas ostensivamente aos olhos de todos: medo, ódio, crueldade, sangue e destruição. Um conto de fadas com alguns corpos desmembrados, não era naquele momento tão ameaçador assim.

                                                                                       
Eu fui exposta a um grande número desses contos em uma idade bastante precoce, antes das versões açucaradas tomarem conta. Quando eu tinha cinco ou seis anos, meus pais me deram de presente um livro com os contos de fadas dos irmãos Grimm. Este não era um livro para agradar às crianças pequenas. Para alguns, acredito, deve mesmo ter provocado terríveis pesadelos. As diversas cenas violentas e assustadoras que apresentavam estavam bem distantes das roupas deslumbrantes e encantadas que agradariam às boas moças.

Mas por que então eram tão atraentes essas histórias? É difícil dar uma resposta definitiva. Com certeza elas não têm qualquer aplicação direta para a nossa vida real. Elas não são muito úteis do ponto de vista prático. Não era para nossa vida exterior que os contos de Grimm se endereçavam, mas para o nosso mundo interno. Estas histórias têm sobrevivido ao longo de tantos séculos e com tantas variantes, porque elas são muito ricas para a nossa vida interior - pode-se dizer que são acolhidas pelo nosso mundo dos sonhos, porque reúnem os pesadelos e o pensamento mágico. Como diz Margaret Drabble, há um mistério em tais histórias que vai muito além do alcance da mente racional.
                                                                                          "Sadistik" album cover

Se me perguntassem que história era a minha favorita não saberia dizer. Pensando hoje, cerca de cinqüenta anos mais tarde, acredito que eram aquelas que tinham pássaros no enredo.

Nos contos de fadas, as aves são mensageiras que conduzem o herói na floresta escura, trazem notícias, aconselham, executam vinganças, como o pássaro na história "O Noivo ladrão", ou as pombas bicando os olhos das irmãs no final de "Cinderela". Tinham ainda aqueles pássaros que se transformavam em gente. Esses eram o meu tipo predileto.

Encontramos muitos pássaros assim em contos dos irmãos Grimm como: "A cotovia que canta e pula", “Jorinda e Joringel” , “Os seis cisnes” , “Os sete corvos” , “Os doze irmãos” . No meu ponto de vista as duas histórias mais impressionantes de metamorfose em pásaros são: “A árvore de Junípero” e “O pássaro de Fichter” . Naquela época eu não sabia nada sobre as muitas lendas em diferentes culturas em que as almas dos mortos se tornam aves de vários tipos. Ainda assim eu já sabia que as pessoas que transformam em aves nos contos de fadas na verdade estavam mortas, e que portanto transformá-las novamente em humanos não era apenas um gesto de metamorfose, mas de ressurreição.
                                                                                    Nicoletta Ceccioli 


Porque é que eu estava interessada em trazer os mortos de volta à vida? A maioria das crianças tem essa preocupação, especialmente quando conhecem alguém que tenha morrido, ou que estejam perto da morte. Sua compreensão da morte não costuma ir tão longe aos reinos abstratos do “não ser”, especialmente tendo sido informadas de que os mortos vão para o céu, ou partem em uma longa viagem, ou ainda se tornam anjos. As crianças foram portanto induzidas a acreditarem que os mortos ainda existem em algum outro lugar.

Ainda assim, a ressurreição é uma idéia que é muito atraente para as crianças. Significa que nada nem ninguém vai ser perdido de uma vez por todas. Então, essa possibilidade de ressureição foi para mim foi o principal apelo de "A árvore de Junípero".


                                                                                          Kelly Louise Judd


Em "O pássaro de Fichter", a menina fica horrorizada ao descobrir que suas duas irmãs foram cortadas em pedaços, mas ela se descobre capaz de montar suas partes de novo no lugar para que as meninas voltem a viver. Já adulta descobri que esse gesto se aproximava de antigos rituais xamânicos de morte e renascimento do norte da Europa.

Por outro lado, a casa do bruxo na “floresta escura” se assemelha ao reino da morte, com o bruxo sendo uma espécie de Hades que rapta a donzela Perséfone. Então o que temos é uma menina que é forçada a entrar no palácio da morte e acaba adquirindo uma nova forma para o corpo (a caveira que ela deixa para trás) e uma forma para a alma (o pássaro). De fato, ela realiza a sua própria ressurreição. É um poderoso façanha, todos devíamos começar a recolher mel e penas de pássaro imediatamente.


                                                                                      David Stoupakis


Porque é que nessas histórias as almas se tornam aves em vez de outra coisa? Eles podem, evidentemente assumir a forma de outras criaturas como sapos, ursos, raposas, árvores, borboletas, e assim por diante. Aves e almas, no entanto, parecem ter uma afinidade natural – talvez pela leveza, pelo vôo, pelas asas, ou pelo canto. Mas todos os animais e as aves nos mitos e na tradição folclórica existem em uma zona de fronteira - a fronteira entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. Uma das grandes tarefas dos antigos xamãs era a de conduzirem a alma para fora do corpo, quando ela assumia formas animais e visitava o mundo dos mortos. Para quê? Para reunir informações úteis para o mundo dos vivos e se comunicar com os mortos.


Nathalie Shau


 Essas estórias dos Grimm com metamorfoses de aves são, portanto, parte de uma estrutura muito maior. As irmãs que ter fazem votos de silêncio e costurar para desencantar seus irmãos transformados em aves, ou que entram no escuro mortal das casas de bruxas e feiticeiros a fim de resgatar os seus entes queridos, ou então, para salvar a si mesmos, são herdeiros de uma longa tradição. De acordo com Carlo Ginzburg em "Êxtases: decifrando os Sabás das bruxas", ir para o além e retornar não é apenas um entre muitos motivos do folclore e da mitologia: é o motivo, o "núcleo elementar da narrativas” que tem acompanhado a humanidade durante milhares de anos. A participação no mundo dos vivos e dos mortos, nas esferas do visível e do invisível é um traço distintivo da espécie humana.

Não admira, então, que essas histórias de aves, essas histórias de viagens para o mundo dos mortos, me intrigaram quando criança. Eles são parte da história que tem intrigado a todos nós, como seres humanos, por muito mais tempo do que qualquer pessoa possa se lembrar."



Jenny Bird


Texto adaptado do livro “Mirror, mirror on the wall: women writers explore their favorite fairy tales” editado por Kate Bernheimer – 2nd Anchor Books, 1998.

A primeira imagem é uma colagem minha, as outras foram colhidas de artistas como Polly Morgan, Jenny Bird, Maggie Taylor, Nathalie Shau e David Stoupakis, entre outros artistas que adoro.

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