30 de jun. de 2010
29 de jun. de 2010
Este conto começa assim
ste conto começa assim: já era quase meia-noite quando Yuri finalmente chegou à casa de Baba Yaga. Era sinistra. A casa tinha pés-de-galinha e cheiro de cocô, de galinha. Claro que sua vontade era sair dali correndo, sem nem olhar para trás, e foi exatamente isso que fez logo que a velha, cheia de verruga na cara e de unhas tão compridas que tocavam o chão, abriu a porta.
O menino não pensou duas vezes. Saiu em disparada tomando o caminho de volta, embora soubesse que não voltaria a ser o mesmo nunca mais. “Nunca mais, nunca mais, nunca mais”, dizia ele em voz trêmula enquanto ferrava os pés em gravetos e arbustos e folhas secas e buracos totalmente abstraídos no percurso da ida. A velha também chamou três vezes: “Quem está aí? Quem está aí? Quem está aí?”, e não tardou para vestir suas botas mágicas, cheias de melecas e cascas de feridas, para caçar aquele que certamente teria as carnes tenras e macias como um franguinho de leite.
O menino sabia correr feito lebre, tinha aprendido com o negro da mercearia, mas porque não tinha botas mágicas e, portanto, não podia voar, acabou sendo derrubado pelas enormes unhas da bruxa, tão pretas e cheias de curvas, que lhe causavam nojo e não estranhamento. Naquela hora deveria jogar a toalha mágica do gato para que ali brotasse um lago gigantesco que o separaria de Baba Yaga por alguns instantes, até que sua bruxaria fizesse surgir milhares de bois que sorvessem as águas num piscar de olhos, e viesse o corvo e o recado para o menino correr ainda mais, e então lhe atiraria o pente mágico da empregada de onde nasceria uma floresta cheia de galhos espinhudos que atravessassem o corpo da megera em pleno movimento, e Yuri chegasse a sua vila como o único menino russo a enfrentar a terrível Baba Yaga sem perder a vida.
Mas Yuri não chegou a entrar na casa da nefasta, não seduziu a empregada, não subornou o gato, não ganhou o pente, não comprou a toalha, e acabou na frigideira, depois de muito bem asseado pela primeira e já sem os olhos arrancados pelo segundo. Assim termina o conto: do jeitinho que a bruxa sempre desejou.
Alexandra Pericão
Alexandra Pericão
My Alice
Charles Blackman
Joyce Carol Oates
o work of art so thrills us, or possesses the power to enter our souls deeply and perhaps even irreversibly, as the "first" of its kind. The luminous books of our childhood will remain the luminous books of our lives.
Charles Blackman
For me, it was Lewis Carroll's "Alice's Adventures in Wonderland and Through the Looking-Glass," a Christmas gift from my grandmother when I was 8 years old. First of all, I was enchanted by the book as a physical object, for there were few books in our rural household: both Alice tales were published in a single, wonderful volume (Grosset & Dunlap, 1946) with reproductions of the famous illustrations by John Tenniel, almost as fascinating to me as the tales themselves. There was a dreamlike cover showing Alice amid the comical-grotesque Carroll creations that, to an adult eye, bear a disturbing kinship with the comical-grotesque creations of Hieronymus Bosch, and this cover, too, was endlessly fascinating. In my memory, this first important book of my life was quite large, about the size of what we call today a coffee-table book, and heavy; but when I investigate -- for of course I still have the book in my 19th-century British bookcase, along with "The Hunting of the Snark," Lewis Carroll's "Bedside Book," and other Carroll titles -- I discover to my surprise that it measures only 6 1/2 by 9 inches! A quite ordinary-sized book after all.
Charles Blackman
What is the perennial appeal of the Alice books? If you could transpose yourself into a girl of 8, in 1946, in a farming community in upstate New York north of Buffalo, imagine the excitement of opening so beautiful a book to read a story in which a girl of about your age is the heroine; imagine the excitement of being taken along with Alice, who talks to herself continually, just like you, whose signature phrase is "Curiouser and curiouser," on her fantastic yet somehow plausible adventure down the rabbit hole, and into the Wonderland world. It would not have occurred to me even to suspect that the "children's tale" was in brilliant ways coded to be read by adults and was in fact an English classic, a universally acclaimed intellectual tour de force and what might be described as a psychological / anthropological dissection of Victorian England. It seems not to have occurred to me that the child-Alice of drawing rooms, servants, tea and crumpets and chess, was of a distinctly different background than my own. I must have been the ideal reader: credulous, unjudging, eager, thrilled. I knew only that I believed in Alice, absolutely.
The influence of the "Alice" books on my inner life is surely incalculable. I'd more or less memorized them as a child from repeated readings. (I've subsequently written on the subject, and have several times taught "Alice" in university courses.) At any time, in any place, appropriate or otherwise, including even listening as I'm being introduced to give readings or lectures, and often in social or professional gatherings, the Alice-voice rises to consciousness and I hear "Curiouser and curiouser" -- "Who cares for you? You're nothing but a pack of cards!" -- "Twas brillig and the slithy toves/Did gyre and gimble in the wabe;/All mimsy were the borogoves,/And the mome raths outgrabe" -- "Take care of yourself! Something's going to happen!" Impossible to know if a fictitious character has provided me with a "voice," or whether my natural voice was nearly identical with Alice's.
To descend down a rabbit hole, to push through a mirror in a drawing room, to enter that "other world" of the imagination -- this is Alice's destiny, as it might be said to be our collective destiny, if only we value it and cultivate it. For the artist of any kind, the experience is life itself. What is most wonderful about the "Alice" tales, for a child reader at least, is that though they contain nightmare material, and are, intermittently, really quite frightening, Alice triumphs in the end; she retains a fundamental reason, fair-mindedness and sense of justice, as well as a necessary sense of humor, and at the end of both adventures she "wakes" to her real life about which we know nothing other than that she has a sister and there are several kittens in the household. Not for Alice, our Alice, the fate of children in the crueler of the fairy tales of the Brothers Grimm, for Alice is the self's very obduracy, forever innocent, and blessed.
Charles Blackman
Charles Blackman
27 de jun. de 2010
Alicitis
"Siga o coelho. Escorregue pela fresta de uma esquina urbana, suba as escadas e descubra uma nova Alice-Maravilha."
um prédio estranho no centro de São Paulo, escuro e labiríntico como um filme de David Lynch, aconteceu a esposição ALICIDADE, de 19 a 27 de Maio de 2010. Oito artistas transformaram o espaço através da street art, colagens, pinturas e fotos. Lunkie, Adriana Peliano, Celinha Fink, Luiz Zonzini, Yves Tadeu e Pita, Frederico Pellachin e Satansmothers, revelaram ali novas alicidades. A exposição teve curadoria de Fabiana Caso e Laurence Trille.
As possibilidades abertas pelo mundo da colagem e da street art marcaram os jogos de linguagem que os visitantes da exposição foram convidados a participar. Desenhos, palavras, rabiscos, rasuras, interferências, deslocamentos e diálogos entre rasgos e traços marcaram os fragmentos de Alice deslocados no espaço, num jogo de improváveis conexões e associações inusitadas.
O cadáver delicado é um jogo surrealista inventado na década de 20 do século passado. O jogo podia ser realizado através de textos, desenhos ou colagens e consistia numa criação coletiva em que cada participante inseria um novo elemento numa composição em processo, em geral sem enxergar o que havia sido adicionado antes. Esse é um exercício de descondicionamento da percepção e um desafio à criação de novos mundos.
Alicitis são contaminações de linguagem, transcriações coletivas, jogos esquisitos, corpos desmembrados e reconfigurados em perversos palimpsestos. Uma caixa de supresas, estranhas diversões.
um prédio estranho no centro de São Paulo, escuro e labiríntico como um filme de David Lynch, aconteceu a esposição ALICIDADE, de 19 a 27 de Maio de 2010. Oito artistas transformaram o espaço através da street art, colagens, pinturas e fotos. Lunkie, Adriana Peliano, Celinha Fink, Luiz Zonzini, Yves Tadeu e Pita, Frederico Pellachin e Satansmothers, revelaram ali novas alicidades. A exposição teve curadoria de Fabiana Caso e Laurence Trille.
As possibilidades abertas pelo mundo da colagem e da street art marcaram os jogos de linguagem que os visitantes da exposição foram convidados a participar. Desenhos, palavras, rabiscos, rasuras, interferências, deslocamentos e diálogos entre rasgos e traços marcaram os fragmentos de Alice deslocados no espaço, num jogo de improváveis conexões e associações inusitadas.
O cadáver delicado é um jogo surrealista inventado na década de 20 do século passado. O jogo podia ser realizado através de textos, desenhos ou colagens e consistia numa criação coletiva em que cada participante inseria um novo elemento numa composição em processo, em geral sem enxergar o que havia sido adicionado antes. Esse é um exercício de descondicionamento da percepção e um desafio à criação de novos mundos.
Alicitis são contaminações de linguagem, transcriações coletivas, jogos esquisitos, corpos desmembrados e reconfigurados em perversos palimpsestos. Uma caixa de supresas, estranhas diversões.
24 de jun. de 2010
Alice feminista
Já contei por que não gostei da Alice do Tim Burton (AQUI e AQUI). Mas pedi também que quem tivesse gostado, contasse pra gente o que existia nesse outro lado do espelho que por algum motivo eu não conseguia enxergar. É muito bom que seja possível as pessoas terem visões tão diferentes de uma mesma obra, o que torna o mundo muito mais instigante e plural.
Encontrei essa crítica do filme do Tim Burton que faz uma análise psicológica feminista sobre a jornada de Alice rumo à sua maturidade e independência. A autora comenta o universo simbólico apresentado pelo filme de forma afetiva, fundamentada e sensível. Embora eu não reconheça o que ela diz no filme do Tim Burton, sua análise aponta aspectos muito relevantes do processo de crescimento da mulher, o que sem dúvida é essencial também na viagem de Alice pelo mundo dos sonhos, em seu inesgotável rito de passagem. Fiquei mais feliz ao ler esse texto, espero que vocês fiquem também.
Encontrei essa crítica do filme do Tim Burton que faz uma análise psicológica feminista sobre a jornada de Alice rumo à sua maturidade e independência. A autora comenta o universo simbólico apresentado pelo filme de forma afetiva, fundamentada e sensível. Embora eu não reconheça o que ela diz no filme do Tim Burton, sua análise aponta aspectos muito relevantes do processo de crescimento da mulher, o que sem dúvida é essencial também na viagem de Alice pelo mundo dos sonhos, em seu inesgotável rito de passagem. Fiquei mais feliz ao ler esse texto, espero que vocês fiquem também.
arabéns ao diretor do filme, Tim Burton. A nova Alice no País das Maravilhas tem tudo o que precisamos para dar o salto para o próximo nível psicológico da libertação da mulher. Com apurados efeitos visuais e as mudanças apropriadas à história original, esta sumariza a jornada da heroína rumo à terra das maravilhas.
Este filme lembrou-me de Yentl, um filme dos anos 80, com Barbara Streisand como principal protagonista representando uma moça judia que disfarçou-se de homem para poder seguir seu amor pelo conhecimento. Desta vez, quase trinta anos depois, o que queremos são maravilhas. Queremos frescor, supresa e encantamento. Não estamos mais satisfeitas com o velho conhecimento de sempre, que, a propósito, é feito pelos graves e rígidos estudiosos homens. Este não é o caminho feminino. Aquilo foi seu começo, a prehistória da libertação das mulheres. Para poder avançar, as mulheres agora devem libertar-se das correntes internas que as seguram, e entrar no país das maravilhas.
Vamos analisar o filme para compreender o padrão da jornada interior das mulheres.
Para começar, Alice tem um pai visionário. Como escrevi recentemente (Anima e Animus. Nossos país dentro de nós), a figura paterna representa o mundo das idéias para a garota. Tendo uma mente inventiva, o pai de Alice endossa os estranhos sonhos da filha. “As pessoas loucas são sempre as melhores”, ele acrescenta. E isto é verdade, pois as novas idéias frequentemente parecem loucuras, mas sem elas estaríamos todos ainda na Idade da Pedra Lascada. Agora, saber disso na forma de uma afirmação geral é uma coisa; outra totalmente diferente é viver esta realidade numa vida de pessoa normal. Qualquer pessoa diferente de seu ambiente sabe o quanto é difícil confiar em si e manter firme a própria visão das coisas. Assim Alice.
Não é suficiente sentir-se diferente do modelo social de um determinado momento histórico. Quando uma mulher deixa a infância e entra no mundo adulto onde ela tem que tomar decisões e definir sua vida, ter tido uma criação propícia lhe dá o forte sentimento de desconforto no assim chamado mundo “apropiado” - que é o jeito tradicional e embolorado de ser que vai adiante por inércia. Chega a hora em que uma garota precisa falar por si mesma e defender quem é.
Vamos dizer a verdade. Este é o momento de encarar o próprio mundo interior, não sonhos e fantasias, mas o real, verdadeiro e poderoso mundo interior, que clama sua existência e sua própria lógica. Sem fazer isso, a única escolha que uma mulher tem é o de encaixar-se em papeis pré-estabelecidos e desistir de sua unicidade.
Alice, que é esquisita o suficiente para seguir o coelho/sua imaginação, começa sua jornada. O processo consiste em dois aspectos interconexos: a descoberta de quem é e o tornar-se corajosa. Quem ela é significa o que ela sempre foi mas perdeu ou esqueceu por causa da ocorrência de crescer num ambiente social onde é dito às crianças como devem pensar, comportar-se e sentir. Na educação tradicional (seja na família que na escola), desenvolvimento coincide com ser formatados em moldes pré-determinados dando pouca atenção ao que a criança é dentro de si mesma. Os papeis sociais são lentos assassinos a sangue frio.
O filme mostra a dúvida a respeito de Alice: é ela a verdadeira Alice ou somente uma impostora? Este é a idéia principal como é nossa questão central na vida: somos reais? Ou só palhaços fingindo ser aquilo que exibimos a todos? Somos verdadeiros e confiáveis? Vamos conseguir?
Para ajudar Alice a encontrar a si mesma, a história desdobra-se entre medo e compaixão. Mais e mais, Alice vai se dando conta que depende dela a salvação de seus queridos, primeiro de todos o Chapeleiro Louco - a representação das idéias malucas que ela andou chocando por toda sua vida. O Chapeleiro Louco é seu Animus, que pôde existir tão colorido e imprevisível graças ao apoio do pai de Alice. E Alice precisa salvá-lo.
Isto lembra-me um sonho que eu tive nos meus primeiros anos de análise pessoal. Tinha cerca de 18 anos na época. O sonho começa comigo conversando com um rapaz perto de um carro. Depois o sigo para dentro de um edifício. Encontro-me num apartamento em andar alto, onde vive uma família normal, comum. Descubro que há um homem louco trancado no banheiro. Ele tem sido mantido lá há muito tempo. O banheiro é o lugar onde nos limpamos e descarregmos as partes de nós não quistas. Liberto o homem. Ele vai a uma janela próxima que está aberta. Ficamos lá e eu olho para ele. Ele fixa a distância, daí pega um telescópio e olha além do mar, muito além. Esta era sua loucura: ele podia ver além das interpretações e compreensões da vida superficiais. Sua vista é profunda e não convencional. Como sabemos, esta visão é altamente desconfortável para aqueles que preferem “manter quieto”, e temem perguntas.
Salvar o Chapeleiro Louco significa, para Alice, comprometer-se consigo mesma e com a tarefa que ela tem adiante: soltar sua vida de qualquer pensamento julgador. E aqui entra a diferença entre a Rainha Vermelha e a Branca. A primeira é o aspecto negativo do arquétipo da mãe, a mulher patriarcal que inflacionou sua cabeça com idéias repetitivas. Ela impõe dogmas, crenças não-questionáveis a suas crianças e a todos que estiverem à sua volta. O resultado é gente falsa e covarde. Por causa dela, o Chapeleiro é Louco e todo Animus Criativo vive trancado nos banheiros das casas das famílias respeitáveis. A Rainha Vermelha representa a consciência coletiva, com inteligência tão encolhida quanto inchados são seus pensamentos manipuladores. Ela também mostra belamente a ambiguidade do amor. Em nome do amor, escorreu sangue nas guerras e lágrimas no desespero.
A Rainha Branca, do outro lado, é simplesmente a Bruxa que desafia a histórica idéia patriarcal sobre bruxas vestidas de preto e sendo más. Ela é o Feminino não submetido à lógica patriarcal. Foi posta de lado, não destruída, mas vive num mundo separado. É aqui que Alice encontra seu tamanho certo - nem muito reduzida, nem muito inflacionada -, e suporte. Aqui é a terra que dá raízes à Nova Mulher.
Chegar à Rainha Branca não é suficiente. Falta lutar contra o monstro. Esta é uma luta real que toda mulher tem que assumir se quiser seguir sua alma. Enquanto ato real no mundo, este requer coragem. Para vencer o monstro Alice precisa da espada. Espadas são o símbolo do pensamento discriminador, uma das coisas mais preciosas que há. Sem ele, a coragem é vaidade e cegueira.
Uma garota pode instintivamente rejeitar uma situação como perigosa para sua personalidade. Entretanto, uma mulher deve ir além disso, ela precisa saber porque ela não gosta a fim de poder tomar as decisões apropriadas. Esta é a espada ao trabalho: ela distingue e separa. Torna sentimentos fortes e obscuros em idéias afiadas e em límpida visão acerca da vida. Assim fazendo, Alice encontra sua identidade e a filosofia de sua existência.
Com esta espada Alice luta contra o monstro. A face feia da consciência coletiva que impõe papeis e valores, que tenta moldar e julgar, diminuir e barganhar, manipular e destruir a criatividade. A luta com espada é diferente daquela com a clava, como as que Hércules fazia golpeando de todos os lados como um maluco (não é uma coincidência que ele ficou realmente louco numa ocasião). A espada representa uma luta sofisticada e consciente, baseada na inteligência e que também exige coragem e determinação.
Golpe final, “E corto tua cabeça,” diz Alice, baixando a espada no longo pescoço do monstro. A batalha está vencida. Agora ela está livre. Para que? Precisamente, livre de dizer não aos papeis tradicionais e livre para dar início à jornada de sua vida. Única, preciosa e totalmente individualizada. E aqui, a metamorfósis está completa.
colagens de Adriana Peliano sobre fotografias do filme do Tim Burton
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9 de jun. de 2010
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